FALTA TÍTULO José Nunes




  Em Uma coisa não é outra coisa1, José Maria Vieira Mendes (JMVM) explora a relação entre teatro e literatura, que assenta numa história que pressupõe que, para a existência de um espetáculo de teatro, é necessária a existência de um texto dramático do qual se parte e que, para um texto ser literatura dramática, tem que ser levado a um palco.

  Sempre me fez muita confusão a tentativa de preponderância do texto/literatura dramática sobre o teatro e a existência de um acordo tácito de que existe um texto que precede um espetáculo. É uma redução das possibilidades do que pode ser teatro e do que pode ser literatura. Por outro lado, sempre simpatizei com uma certa recusa antiliterária, reativa a esta tradição e preponderância, que procura estabelecer uma cisão e por isso gera um espaço, uma fissura, uma outra possibilidade de sobrevivência. No entanto, como identifica JMVM, também este discurso antiliterário está a reduzir possibilidades, caindo no dualismo antinómico e alimentando a preponderância da literatura dramática, ao relacionar-se com esta através da sua recusa. Depois de fazer este reconhecimento das limitações deste posicionamento, resta-me “oscilar” como procuram fazer os “metamodernistas”2 (pelo menos em teoria) entre o conhecimento previamente existente e o agora produzido. Ou seja, saber que existe todo um contexto histórico que procura estabelecer uma relação de dependência entre literatura e teatro e saber que existe um outro contexto histórico que recusou essa dependência, embora estivesse capturado pela lógica do dualismo antinómico. Resta-nos libertar dessas amarras e explorar os espaços de liberdade que se abrem com esta constatação e com a “eliminação do problema”. .


  Importa também esclarecer que não estou preocupado ou numa crise de identidade em busca de uma definição para o tipo de trabalho que faço. O que procuro aqui é partilhar nas próximas linhas uma reflexão que surge de uma vontade de diálogo com o capítulo “III. O Público” de Uma coisa não é outra coisa, onde JMVM aborda o fenómeno da “escrita de ou para o palco”3, no qual me pareceu existir uma porta aberta que me interessava explorar e sobre a qual, por razões de foco, JMVM não explora. Falo de um tipo de escrita para espetáculos que não tem propósitos literários. Esta reflexão parte do trabalho que fazemos na Estrutura, do contexto artístico em que nos inserimos e de terminologias que alguns teóricos e artistas (como Hans-Thies Lehman e Tim Etchells) desenvolveram em relação a este tipo de escrita/espetáculos, tudo isto num exercício de diálogo com o livro Uma coisa não é outra coisa. Pareceu-me também pertinente porque, para além de ser dramaturgo, JMVM participa na criação de espetáculos com o Teatro Praga onde trabalha num modus operandi, que sinto que é próximo da Estrutura e que também não se enquadra no termo “escrita de palco”.


  Por outro lado, para além do interesse por esta questão, sou/fui várias vezes questionado acerca do meu trabalho com perguntas que me tentavam inserir numa norma ou numa “gaveta” – “Qual é o texto que vão fazer?” ou “Os vossos espetáculos são sempre com textos originais?” E perante estas perguntas fui obrigado a reagir. E depois de reagir, obriguei-me a pensar e refletir sobre essa reação. Porque é que achava certas coisas sobre o teatro que faço e sobre os textos que incluo nos meus espetáculos? Porque é que à partida recusava que me capturassem ou cristalizassem a minha identidade dentro de conceitos nos quais não me revejo? Onde é que encontrava fundamentação teórica que, de algum modo, sentia que representava a minha identidade? Porque é que me sentia mais confortável com determinados termos para definir o teatro que faço? Porque é que os outros tinham determinadas certezas sobre o teatro que faço e me tentavam cristalizar? Porque é que os contextos de produção, programação, crítica ou apoio às artes tentam moldar, capturar ou cristalizar a identidade dos criadores e do “tipo” de objetos artísticos que fazem?


  Estas eram algumas das interrogações que pairavam na minha cabeça e que durante a leitura de Uma coisa não era outra coisa estavam presentes. Algumas delas foram sendo relativizadas com a proposta de JMVM de “eliminar o problema” e permitir a abertura de significados “relativizando a preponderância da norma”. No entanto, no referido capítulo, houve questões que ficaram por esclarecer na minha cabeça e, por isso, dou aqui início ao diálogo.


  No capítulo “III. O Público” podemos ler o seguinte:


"(…) para tornar claras as consequências quotidianas do dogma dualista de que me tenciono desviar, uma expressão em voga no teatro e dramaturgia contemporâneos e cuja semântica se enquadra no princípio de que a literatura é ou pode ser teatro: a da escrita de ou para o palco. Trata -se de uma redefinição ou afinação da literatura dramática que tenciona reportar um fenómeno recente de uma escrita, por vezes sem intuitos literários, que se coloca ao serviço das necessidades de um espetáculo. Escrita de ou para o palco é considerado um termo mais apto a abarcar tanto a clássica literatura dramática como uma escrita cuja existência, vida e morte, é a do espetáculo para o qual foi pensada. Interessa para aqui olhar para a utilização do termo quando este substitui ou equivale ao que escolhi nomear literatura dramática, uma escrita com propósitos literários que sobrevive ao espetáculo, porque ela revela mais uma vez o afunilamento de uma dependência da literatura dramática do teatro. Podia enumerar autores que, respondendo a encomendas, escrevem para determinados atores que conhecem, para determinado palco, encenador ou evento, e começar por exemplo por Shakespeare, o dramaturgo que escreve para o palco do Globe Theatre ou para a sua companhia de atores. (…) O que mais importa reconhecer nesta ideia de escrita para palco é a pretensão, a ela subjacente, de que se escreve para o teatro ou para determinado espetáculo e que esta finalidade se traduzirá num melhor sucesso para a relação entre este e o texto e, consequentemente, para o espetáculo. Esta escrita aproximar -se -ia do teatro que passaria de uma arte a dois tempos, primeiro a escrita e depois a encenação, para uma arte a um só tempo, o do espetáculo." (pp.198-200)


  Este capítulo onde se descreve a “escrita de palco” poderia ser aquele que estaria mais próximo do tipo de trabalho que fazemos na Estrutura. No entanto, senti que fazia falta falar aqui de outro tipo de relação com a escrita em espetáculos e que me parece que foge ao dualismo antinómico ou a uma tentativa de salvamento do drama, do teatro ou da literatura – “performance writing”4 ou “performance text”5.


  Julgo que importa distinguir e contextualizar os termos a que me refiro. Penso que se pode diferenciar dois tipos de famílias quando se fala de uma escrita “mais próxima do espetáculo”: de um lado, “escrita de palco”, “dramaturgia de palco”, “escrita de cena”; do outro, “performance writing” ou “performance text” (traduzíveis como “escrita para performance”, “escrita para espetáculos”, “texto para espetáculos”). Ambas as “famílias” podem incorrer nalguns equívocos e podem no fim de contas não passar “de uma redefinição ou afinação da literatura dramática que tenciona reportar um fenómeno recente de uma escrita, por vezes sem intuitos literários, que se coloca ao serviço das necessidades de um espetáculo”6. No entanto, acho que existem diferenças que tornam estas escritas distintas no seu processo e na sua ambição, diferenças essas que assentam sobretudo na ausência de uma dependência e de uma hierarquização em relação ao texto dramático por parte dos criadores nesta segunda família.


  Como já referido, por razões de foco na discussão, JMVM não se debruça sobre este tipo de escrita no livro, mas, quando o discuti com ele em troca de emails, respondeu-me o seguinte:

  “A diferenciação que proponho no parágrafo que citas é simples: há quem use a expressão dramaturgia ou escrita de palco para chamar a atenção para o facto de os “novos dramaturgos” estarem “mais perto” do palco. Escrevem durante os ensaios, discutem os textos com atores e encenador, etc. E há também quem a use para se referir aos textos escritos especificamente para certas produções e que não sobrevivem a elas, no sentido em que não se querem posteriormente afirmar como literatura. Por razões de foco, no meu livro penso apenas sobre os primeiros casos. Com a tua pergunta, podemos então falar do segundo caso.”

  A “escrita/dramaturgia de palco/cena” revela de facto uma pretensa aproximação do texto à cena, muitas vezes utilizada como jargão por dramaturgos e encenadores que se reveem neste termo e o utilizam como um fator diferenciador da sua escrita e/ou encenação, ou como gerador de uma maior autenticidade ou melhor relação texto-teatro. É fácil enumerar exemplos na História do Teatro para demonstrar que, neste tipo de escrita, estamos apenas perante uma atualização do termo literatura dramática e que, na verdade, este tipo de abordagem continua a ter um lado canônico muito presente, perpetuando uma lógica assente numa estrutura hierarquizada texto-teatro, onde permanecem os tais dois tempos (o da escrita e o da cena) e apenas se tenta realizar uma aproximação que resulta num exercício de alcançar um “melhor sucesso para a relação entre teatro e texto”7.

  Em relação à segunda família, “escrita para espetáculos/performance writing”, acredito que esta não pretende alcançar um sucesso na relação teatro-texto, porque essa relação nem sequer está presente no processo de criação. Ela está fora da equação, precisamente porque se trabalha numa estrutura desierarquizada. Esta desierarquização assenta em vários pressupostos que fazem com que os textos não se insiram nos cânones da literatura dramática. Deste modo, o “texto” do espetáculo não seria editável, não porque se trate de uma “traição” à essência daquele texto, mas antes porque a sua escrita não se regeu por esse pressuposto, isto é, não é sua ambição afirmar-se como literatura dramática, perdurando para lá do próprio espetáculo.


  Falando dos espetáculos da Estrutura, para dar um exemplo concreto do que podemos estar a falar, o texto normalmente não surge a priori. O texto surge como consequência de uma ideia de um espetáculo que se quer fazer. A operacionalização dessa ideia pode ter várias formas que normalmente não hierarquizamos: pode ser o texto, pode ser a conceção plástica, o som, o vídeo, etc. É nesta lógica desierarquizada que pode surgir o texto, sendo que é apenas mais um elemento. O próprio texto pode ser utilizado de múltiplas formas, dito pelos atores, projetado em vídeo, dito por uma voz off robotizada, ou pode ser entregue ao público para este ler em casa, precisamente para lhe retirar o “peso histórico” e ser tratado como “mais um elemento” do espetáculo.


  Por tudo isto, encontrei nas leituras de Lehmann e Etchells e nos conceitos “performance writing/text”, um enquadramento teórico que, de algum modo, se relacionava com o tipo de trabalho que fazia. Não estou com isto a dizer que utilizo este termo para denominar o tipo de trabalho que fazemos (até porque não procuramos nenhum termo para isso) ou a tentar justificar a presença do texto nos nossos espetáculo, embora perceba que, ao afirmar que me sinto próximo do termo, estou de facto a procurar encontrar “uma história e uma tradição” para me “situar”, que tem implicações, perigos e responsabilidades. Contudo, esta não é uma preocupação que esteja presente no ato criativo, interessa-me apenas enquanto exercício teórico de reflexão.

  Voltando à forma como este tipo de “escrita para espetáculos” se relaciona com a publicação de textos e ao exemplo concreto do trabalho da Estrutura, já nos pediram várias vezes “o texto do nosso espetáculo” ou perguntaram-nos se tínhamos interesse em publicar os textos dos nossos espetáculos. Com o passar dos anos, a nossa reação/resposta também foi mudando. No início, a resposta era mais imediata e cheia de certezas: “os nossos textos não são para publicar”. Estávamos convencidos disso e, sem percebermos, estávamos a cair na lógica antinómica antiliterária e “pós-dramática” que renunciava à captura do “nosso” texto do espetáculo para um qualquer cânone da literatura dramática. Arranjamos também um subterfugio que reproduzimos num espetáculo “Nós não fazemos espetáculo com texto, nós fazemos espetáculos-contexto.” Este jogo de palavras, para além de dar corpo à ideia de trabalhar o contexto como conteúdo, que fazia parte da lógica metadiscursiva, metateatral e metaperformativa de alguns dos nossos espetáculos, onde olhávamos para a copresença e para o contexto de apresentação como condição a priori de um espetáculo, procurava demonstrar que era o contexto de cada espetáculo que “provoca” o texto e não o contrário. Se não existisse espetáculo, não existia texto. Ou seja, o texto que faz parte do espetáculo nunca teria sido escrito. Tudo isto era feito sem ter como objetivo tornar o teatro que fazíamos mais vivo, autêntico, atual ou real, era (e é) apenas um modo de fazer, uma abordagem. Deste modo, a escrita e o espetáculo acabam por se misturar e não estão em polos separados. E com isto não temos o objetivo de arranjar uma melhor relação entre eles, nem queremos repensar o conceito de literatura dramática, nem aproximá-los, pois temos noção que são duas coisas distintas, mas também não ignoramos que esta é uma relação diferente ou não-normativa entre texto e teatro. Não quer dizer que já não tenhamos feito espetáculos, em que o texto surge primeiro e é depois encenado, separando claramente o território da literatura e do teatro ou, se preferirmos, da escrita e da cena. Mas no geral, são textos para espetáculos, não são literatura. É o espetáculo que gera o texto e não o contrário.

  Estou também completamente de acordo que para a “escrita de cena” “a literatura é ou pode ser teatro” e que a procura de uma aproximação do tempo da escrita ao tempo da encenação tornando o teatro numa arte a um só tempo, segue uma vontade de “acercar o teatro de uma verdade ou credibilidade que seria alcançada se o espetáculo apresentasse ou se aproximasse de, e não imitasse um acontecimento real."8 No entanto, na “escrita para espetáculos/performance writing” acho que é possível chegar a este mesmo fim ou consequência da “arte a um só tempo” (o do espetáculo) por outros caminhos e sem afirmar que literatura é teatro ou sem uma vontade de busca do real ou de exploração da exclusividade da copresença. Isto dá-se numa lógica de pensamento livre de amarras, dependências hierárquicas e relações históricas, onde não há vontade nem de juntar teatro e texto, nem de os separar, porque, pura e simplesmente, essa relação não faz parte da equação no ato de criação do espetáculo (independentemente de quem quiser vê-la no espetáculo, mas isso já não é problema meu). Ou seja, o “problema” já desapareceu logo no início, porque o “problema” nem sequer se coloca. O espetáculo dirá qual a relação que se estabelece e, deste modo, talvez seja possível afirmar que o que conta é “o tempo do espetáculo” e que talvez até seja a tal “arte a um só tempo”, onde encenação, texto, conceção plástica são um meio e não um fim. Onde, em última análise, o próprio espetáculo é um meio e não um fim. O “problema” pode surgir quando, exteriormente, alguém confronta o resultado do espetáculo com a sua própria expetativa e conhecimento daquilo que pressupõe que é teatro, que é um texto, que é a relação de um texto com o espetáculo, pois vivemos num mundo recheado de relações históricas e dependências hierárquicas estruturais que condicionam perceções e possibilidades de relacionamento com os objetos artísticos.



  Voltando ao meu ponto de partida para este texto, a minha ideia era explorar aquele espaço em aberto que surge no livro de JMVM e tentar demonstrar que aquele tipo de abordagem (“escrita para espetáculos” ou “performance writing”) que, de alguma forma, sinto que se relaciona com o que eu faço, procura criar um espaço de liberdade dentro do teatro e desamarrá-lo da relação com o texto. Afirmo que nos meus espetáculos “é o espetáculo que cria o texto e não o contrário” (ao contrário do que faz a “dramaturgia de palco”), da mesma forma que é o espetáculo que cria a cenografia, o vídeo, a luz, etc. Daí que me fizesse alguma confusão retirar o texto do espetáculo para o inserir num contexto de edição, no contexto da literatura dramática. Sempre me revi nestas palavras de Tim Etchells sobre os seus textos: “These texts are ghosts. (…) They were not made for “other people to “do” them, and they were never really meant to stand alone.”9

  Como referi antes, com o passar do tempo, também a nossa resposta a editar os textos dos espetáculos foi-se reformulando. Para isto contribui também a proposta que JMVM enuncia de se adotar um modelo de pensamento que procura abrir possibilidades de significados (tornando as coisas em identidades em movimento e não cristalizadas). Nesta perspetiva, a hipótese de encarar a publicação de um texto de um espetáculo apenas como uma possibilidade de fazer nascer uma nova existência para esse objeto é bastante libertadora. Isto tanto poderia ser válido para um texto, como para qualquer outro elemento de um espetáculo, ao qual estivéssemos dispostos a dar outras existências (como vídeos ou elementos plásticos). Partindo desta nova perspetiva, consigo perceber que a minha relação inicial com a edição dos textos dos meus espetáculos estava a cair numa lógica de recusa antiliterária (dando preponderância ao texto e caindo também no dualismo antinómico), onde partia do pressuposto que “sei” o que é literatura dramática e que não quero ser capturado por ela. No entanto, a literatura dramática pode também ela ser muita coisa e um texto de espetáculo editado pode também ele ser muita coisa e ter muitas possibilidades. A existência de um texto de um espetáculo meu em papel não tem necessariamente que se reger por um conjunto de lógicas e mecanismos automáticos que, por norma, se impõe à literatura dramática como, por exemplo, “os meus textos serem feitos por outros”. A pista que Etchells me tinha fornecido, e da qual me aproprio aqui, talvez fosse falsa. Tanto ele como eu estaríamos a cair na armadilha antinómica, pois um texto editado não tem que ser necessariamente capturado pela lógica da literatura dramática ou do cânone, pode ser antes um objeto com identidade fluida e em movimento, não cristalizada e passível de diferentes existências, conforme nos propõe JMVM.

  Apesar disso, quando pensamos numa edição questionamo-nos: Qual o formato? Qual o significado deste gesto de fazer uma edição de um texto e qual o contexto dessa edição? O mesmo se aplicaria a qualquer outro material de um espetáculo passado para outra plataforma. Sempre imaginei os nossos textos passados para o papel como um espaço de liberdade, desligados de um formato convencional e de uma carga de “texto” ou de “literatura”. Achille Mbembe na introdução de “Políticas da Inimizade” diz: “Eis, em todo o caso, um texto à superfície do qual o leitor pode deslizar livremente, sem controlo nem passaporte. Pode demorar-se o tempo que quiser, deslocar-se à vontade, entrar e sair a qualquer momento por qualquer porta. Pode seguir em qualquer direção, mantendo, em relação a cada uma das palavras e a cada uma das suas afirmações, o distanciamento crítico e, como convém, uma pitada de ceticismo”10. Era assim que imaginaria a publicação de textos dos espetáculos da Estrutura e aqui as ideias de Etchells ainda me permanecem próximas: “I’ve tried to leave the texts alone as the ghosts they are, in a desert of white paper or white sand. These ghosts are clues.”11

  Concluindo, o que nos interessa é abrir espaços de liberdade para poder criar espetáculos e textos da forma que quisermos sem barreiras nem limitações, embora conscientes que quem os vê/lê o possa tentar fazer, porque há sempre medo do desconhecido e queremos saber o que ele é, tal como dizemos num dos textos de “The End” e com o qual aproveito para terminar:

  “(…) Nós aproximamo-nos do “outro” para capturá-lo, para compreender o que ele significa para nós. Não queremos saber quem ele é. Queremos encaixá-lo naquilo que nós sabemos que existe e atribuir-lhe significado a partir do nosso dicionário. Não deixamos espaço para o outro ser. Não deixamos espaço para a folha em branco. Nós capturamo-lo. Queremos compreendê-lo e compreendê-lo não significa escutá-lo, mas produzir significados em cima daquilo que ele performa, que ele aparenta, que ele diz. Enchemo-lo de significados, ideias dele que não estavam lá, mas que nós lhe atribuímos, porque o outro tinha que significar alguma coisa, tinha que ter uma identidade, não podia ser um vazio. Não lidamos bem com vazios, temos que os preencher. O vazio é o zero. Não significa nada e pode significar tudo e isso é o desconhecido, gera medo. Por isso é que nos dizem que não devemos falar com desconhecidos, porque não sabemos o que eles são, o que significam…”12



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1 José Maria Vieira Mendes (2016), Uma coisa não é outra coisa, Livros Cotovia
2 Luke Turner, Metamodernist Manifesto, 2011 (http://www.metamodernism.org/)
3 Também se usa o termo “dramaturgias de palco” ou “escrita de cena”
4 Termo utilizado por Tim Etchells (Forced Entertainment) – ver apêndice na última página
5 Termo utilizado por Hans-Thies Lehmann – ver apêndice na última página
6 José Maria Vieira Mendes (2016), Uma coisa não é outra coisa, Livros Cotovia (p.198)
7 José Maria Vieira Mendes (2016), Uma coisa não é outra coisa, Livros Cotovia (p. 200)
8 José Maria Vieira Mendes (2016), Uma coisa não é outra coisa, Livros Cotovia (p.200)
9 Tim Etchells (1999), Certain Fragments, Routledge (p.133)
10 Achille Mbembe (2017), Políticas da Inimizade, Antígona (p. 7) [edição original, 2016]
11 Tim Etchells (1999), Certain Fragments, Routledge (p. 133)
12 “The End” criação Estrutura + André Godinho (2017)



APÊNDICES

Tim Etchells – Certain Fragments13

No livro “Certain Fragments”, no capítulo “On Performance Writing” Tim Etchells apresenta uma versão revista da sua conferência-performance “Performance Writing”. Na introdução diz-nos o seguinte:
“This piece addresses itself to the task of making text for performance, especially within a collaborative process. It is a revised version of a presentation I made in Dartington (UK) at a 1996 conference entitled “Performance Writing”. I was keen to open a door to a broad, adventurous description of what writing to performance might mean – beyond ideas of playwriting which is still, sadly, the measure too often employed in the UK, despite a rich history of writers in theatre spaces who are doing something quite different. The piece talks about physical action and set construction as forms of writing… writing words to be seen and read on-stage rather than spoken… lists, improvisation, reading, whispering, collage as a form – in each case implying a critical dialogue with more traditional notions of theatre or performance writing”. (p.98)
No capítulo “Performance Texts”, onde se partilham vários textos usados nos espetáculos dos Forced Entertainment, podemos ler o seguinte:
“These texts are ghosts. They were made in the midst of clumsy and long performance-making processes – in the midst of group rehearsal and improvisation, soundtracking, “choreography, argument and set-building. They were not made for “other people to “do” them, and they were never really meant to stand alone. I haven’t tried to make a ‘play’ from what was not. The words on the page don’t try too hard to invoke the past of performance time; no complex stage directions, or long pedantic notes. Instead I’ve tried to leave the texts alone as the ghost they are, in a desert of white paper or white sand. These ghosts are clues.” (p. 133)


Hans-Thies Lehmann – Postdramatic Theatre 14

“The following distinction between different levels of theatrical staging has become established: the linguistic text, the text of the staging and mise en scène, and the ‘performance text’. The linguistic material and the texture of staging interact with theatrical situation, understood comprehensively by the concept ‘performance text’. Even if the term ‘text’ here is somewhat imprecise, it does express that each time there occurs a connection and interweaving of (al least potentially) signifying elements. Through the development of Performance Studies it has been highlighted that the whole situation of the performance is constitutive for theatre and for the meaning and status of every element within it. The mode of relationship of the performance to the spectators, the temporal and spatial situation, and the place and function of the theatrical process within the social field, all of which constitute the ‘performance text’ and will ‘overdetermine’ the other two levels. (...) Hence, for postdramatic theatre it holds true that the written and/or verbal text transferred onto theatre, as well as the ‘text’ of the staging understood in the widest sense (including the performers, their ‘paralinguistic’ additions, reductions or deformations of the linguistic material; costumes, lighting, space, peculiar temporality, etc.) are all cast into a new light through a changed conception of the performance text.” (p. 85)


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13 Tim Etchells (1999), Certain Fragments, Routledge
14 Hans-Thies Lehmann (2006), Postdramatic Theatre, Routledge [edição original, 1999]