Edimburgo, Agosto de 2018 mala voadora




Insistimos sempre na ideia de uma não-identidade quando temos de explicar o teatro que fazemos, ou a mala voadora enquanto companhia de teatro. Não temos uma missão a cumprir através do teatro, não temos uma orientação temática, não temos um “método”, fazemos teatro a partir de coisas muito diversas – de bibelots a peças de repertório, de cenas de cinema a títulos de notícias, de gravações áudio do quotidiano a discursos de chefes de Estado –, e usamos textos readymade de todo o tipo. Mais recentemente, na nossa dupla condição de artistas e programadores, criamos programas alargados de atividades com outrxs artistas com vista a um “mutualismo artístico” (é também nesse sentido que tanto nos interessa a relação com os alunos do Recurso). Dizemos que cada novo projeto é uma experiência descomprometida com as anteriores e preferencialmente diferente delas em tudo (as condições para se fazer uma experiência). Não somos certamente os únicos a fazê-lo, e muito menos a dizê-lo, e, no entanto, as não-identidades não se assemelham umas às outras; são afinal identitárias. .


E acaba sempre por emergir esse monstro inalienável chamado “linguagem”. Loch Ness.   Para a mala voadora, a não-identidade é um caminho possível para ser radical. “Radical” não significa esquisito ou hardcore. “Radical” é um adjetivo relativo a raiz, tal como o verbo “radicar”. Gostamos disso – não da raiz no sentido de “origem” (o “primordial”, ou a ideia mitificadora de que, na origem das coisas, se encontra uma qualquer autenticidade ou verdade), mas a raiz entendida como a própria definição de “teatro”. Neste sentido, o teatro será radical se, de algum modo, tiver como alvo a definição de “teatro” (o que não tem nada a ver com alguém nu a gritar que é anticapitalista, por exemplo).


  Dentro deste âmbito, temos tido um interesse particular pelas definições de natureza operativa – aquelas que dizem respeito a “como se faz”. Não separamos a especificidade de um qualquer tema, história ou texto de um espetáculo da especificidade do “modo de o fazer” – o que implica duas coisas interdependentes: -   o “modo de fazer” no sentido de “como se chega a um resultado” e -   o “modo de fazer” no sentido de “como funciona o resultado que é o espetáculo”. Em gíria, dir-se-ia: o dispositivo processual e o dispositivo cénico.
  A implicação do “modo de fazer” na obra tem 100 anos, encontra-se nos procedimentos de collage, montage e readymade das vanguardas históricas, foi teorizada como possibilidade de “dimensão política da arte” por Walter Benjamin (com referência designadamente a Brecht), alargou-se a múltiplas práticas artísticas a partir da década de 1950, e o termo “processo” vulgarizou-se ao ponto de perder relevância.   O termo perdeu relevância também porque se instalou uma tendência generalizada para achar que a arte deve comprometer-se com os destinos do mundo, em vez de centrar-se sobre si própria. Tal como aconteceu no final da década de 1960, muita arte tornou-se engagé (já não se usa dizê-lo), comprometida, implicada, militante. Uma arte de militância.   Na sua invariável acutilância, António Guerreiro escreveu um artigo no Ípsilon do passado dia 20 de Julho sobre a arte implicada promovida pelos curadores das artes visuais, dizendo que essa arte
  [pode] ser “sobre” os imigrantes e os refugiados, “sobre” grupos marginalizados, “sobre” a emancipação   dos povos, “sobre” os problemas ambientais – temas muito contemporâneos (...).
E constata, com sensatez:
  Evidentemente, perante temas tão grandiosos e urgentes, todos nós, que nos preocupamos com o
  curso do mundo e com as suas misérias e injustiças, não podemos fazer outra coisa senão inclinarmo-
  nos perante uma arte tão empenhada, tão “sobre” aquilo que nos preocupa, tão mergulhada nas coisas
   do mundo.
A seguir, pese embora a positividade desta arte, Guerreiro argumenta:
  Mas, uma vez superada esta condição de reféns em que nos coloca esta operação curatorial-
  especulativa que prescreve uma arte “sobre” (tão cheia de intenções moralistas, políticas, conteudísticas
  e temáticas que parece ela que quer ser tudo menos arte, para atrair espectadores incautos e filisteus
  cultos), é a nossa vez de “especular”. Para o fazer, nem é preciso grandes elaborações teóricas, basta
  desembaraçarmo-nos dos feitiços da epidemia curatorial e, com base em princípios fundamentais da
  estética e da filosofia da arte, fazer algumas perguntas, como se fôssemos uns cépticos troublemakers:
  mas a arte é “sobre” alguma coisa? Uma obra de arte responde assim tão facilmente a injunções
  temáticas? Que operação teve o curador de efectuar para que uma obra de arte seja posta ao serviço da
   engrenagem monolítica, autoritária, an-artística e ilegítima que ele pôs a funcionar, em total autonomia
  (essa mesma autonomia que ele nega às obras que selecciona)?
Guerreiro tem como alvo os curadores das artes visuais, mas a pertinência do seu texto é expansível a outras práticas de “programação” e “gestão cultural” cuja missão também deveria subordinar-se à arte propriamente dita – aos desígnios intuitivos que fazem dxs artistas artistas – mas que, talvez por narcisismo ou ignorância, pervertem o seu próprio papel de mediação entre artistas e público, conferindo excesso de espessura a essa intermediação, agigantando-a a favor da construção de nexos e discursos que pertencem a outro âmbito qualquer que não o da arte. E estes nexos e discursos muitas vezes têm de facto a ver com os “temas grandiosos e urgentes”. (Felizmente, isto não acontece muito em Portugal.)
  Mas o fenómeno a que Guerreiro se refere não se confina ao âmbito de ação dos curadores, porque muitas vezes são xs próprixs artistas que assumem uma responsabilidade civil perante as injustiças do mundo que não é coincidente com a condição do artístico e coincide mais com a militância.
Evidentemente, perante temas tão grandiosos e urgentes, todos nós, que nos preocupamos com o curso do mundo e com as suas misérias e injustiças, não podemos fazer outra coisa senão inclinarmo-nos perante uma arte tão empenhada, tão “sobre” aquilo que nos preocupa, tão mergulhada nas coisas do mundo.   Esta militância também nos levanta dúvidas a nós e, apesar de o texto de Guerreiro dizer tudo o que nos parece essencial dizer, gostaríamos de partilhá-las aqui.

Poderíamos começar por discutir se a arte tem, ou não tem, a capacidade de condicionar efetivamente os destinos do mundo (referimo-nos à arte propriamente dita e não às eventuais iniciativas militantes dxs artistas) mas, sem ir tão longe, parece-nos que seria importante saber “quem produz arte para quem” antes de poder considerar essa possibilidade. E, a este propósito, ocorrem-nos perguntas como: Faz sentido produzir uma arte de militância dentro de galerias e salas de espetáculos? Serão as pessoas que frequentam essas instituições o alvo fundamental da ação militante? Xs artistas militantes tentam encontrar formas de comunicação que se aproximem dxs interlocutores com xs quais o confronto é mais pertinente? Que veículos de difusão poderão conduzir os conteúdos das obras apresentadas nesses contextos artísticos institucionais até um público mais alargado, ou até aos agentes do poder? Uma coisa é certa: se a arte militante não extravasar o âmbito daqueles que facilmente confirmam a pertinência dos seus conteúdos, estaremos perante um mero “ritual de autoconfirmação conjunta”.
  Neste ponto, já estamos dentro da ratoeira. Se estas questões podem ter pertinência, elas são ao mesmo tempo paradoxais relativamente àquilo que aqui queremos defender, porque estas não são questões necessariamente artísticas, mas mais do âmbito de uma “sociologia da arte”, e apenas adquirirão uma dimensão artística se umx artista as tomar como referência para a obtenção de uma obra que tenha relevância artística e que não se limite a ser militância em contexto artístico. O que a arte nos faculta é precisamente um âmbito de invenção e de comunicação mais livre, mais especulativo e menos racional do que o âmbito do discurso não-artístico próprio de teses, manifestos ideológicos, ou de textos como este que está agora a ler. A qualidade dos produtos artísticos não se encerra na limpidez lógica dos seus conteúdos ideológicos. Ou melhor: a qualidade dos produtos artísticos não se encerra na limpidez lógica. Não se encerra, nem na limpidez lógica do discurso veiculado, nem na limpidez lógica causa-efeito inerente à própria ideia de uma arte militante, segundo a qual a causa obra-de-arte-bem-intencionada tem como efeito um-mundo-objetivamente-melhor. A arte é contrária à lógica do positivismo; não serve para ser útil.
  Julgamos importante afirmar isto porque vivemos um tempo perigoso em que parece ser necessário que as práticas artísticas sejam justificadas pela sua objetiva conveniência. Servem para defender ou salvar quem está em situações difíceis, para fazer documentários, salvaguardar memórias, repor a verdade da História, contrapor a geopolítica, discutir assuntos dos noticiários como o Brexit, por exemplo. Impõe-se à arte a necessidade de ela se justificar de modo contrário àquilo que ela é: um território de transcendência das lógicas reconhecíveis das coisas.
  Não estamos com isto a defender o esvaziamento substantivo da obra de arte a favor do “nada”, nem a designada “arte pela arte”, nem a obrigatoriedade do desinteresse kantiano, mas antes a reivindicar que a entrada de conteúdos políticos no âmbito da arte apenas tem interesse se, de algum modo, essa entrada também potenciar o artístico da arte. A forma. Senão, porquê fazer arte e não política, ou jornalismo ou cooperação dentro de associações com fins militantes? E, paradoxalmente, a desvalorização do artístico da arte a favor da veiculação de conteúdos militantes pode constituir uma desvalorização da dimensão política da arte. A arte tem uma dimensão política que lhe é própria e que reside na especulação formal. Na arte, a forma é, em si, uma coisa política. Como afirma Paolo Virno,
  [a] forma do poema é como a forma de uma nova esfera pública, como a estrutura de uma nova ideia.   Procurar novas formas nas artes é como procurar novos parâmetros para aquilo que entendemos como   sociedade, poder, etc. (...) [O] colapso das velhas regras e a antecipação de novas regras, mesmo que   apenas formais, é onde a estética e a resistência social se encontram (...). [O] mais importante efeito
  da arte verifica-se na esfera formal.
E assim se desfaz a velha dialética forma/conteúdo.
  Quanto à introdução de conteúdos políticos na arte capaz de alimentar o novo, ela pode, no limite, assentar na deliberada exploração da ambiguidade entre “discurso não-artístico” e o contexto artístico. Em 1969, no contexto da arte conceptual, que torna suas as prerrogativas da teoria da arte, Terry Atkinson, escrevendo no editorial do primeiro número da revista Art-Language, coloca a irónica possibilidade
  (...) de este editorial, em si uma tentativa de clarificar alguns contornos do que é “arte conceptual”, chegar a ser tomado
  como uma obra de “arte conceptual”.

A arte não tem de parecer-se com a arte anterior. Que a política seja útil para isso!